Regras para pesquisa clínica humana no Brasil

Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)

Representante de participantes de pesquisa do Comitê de Ética em Pesquisa da Fiocruz/ Instituto Oswaldo Cruz

Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), Fiocruz

O país precisa aprimorar a legislação que dispõe sobre estudos com seres humanos para o desenvolvimento de produtos para a saúde, mas sem desrespeitar direitos e princípios já estabelecidos em normas nacionais e internacionais

CRÉDITO: IMAGEM ADOBE STOCK

O investimento em pesquisa científica é um dos indicadores que definem o grau de desenvolvimento de um país. Particularmente, a pesquisa em saúde tem relevância incontestável, pois promove melhorias nos diversos setores e segmentos da sociedade: educação, produtividade, trabalho, qualidade de vida, entre outros. 

Tomemos como exemplo o caso inovador do medicamento ivermectina. Inicialmente desenvolvida na pesquisa clínica veterinária, a ivermectina foi comercializada para o tratamento de parasitas do gado em 1981. Depois, foram desenvolvidas aplicações em humanos, para tratamento de vermes ou parasitas, como sarna e infestação por piolhos. Porém, recentemente, vimos o seu reposicionamento para uso sem evidências científicas no tratamento da Covid-19. Nesse contexto, uma lei que dispõe sobre estudos clínicos pode trazer benefícios ao desenvolvimento de novos produtos para a saúde humana.

Antes de serem executadas, as pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil precisam receber aprovação de pelo menos um dos 888 Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) sob orientação do Conselho Nacional de Saúde (CNS), órgão vinculado ao Ministério da Saúde (MS), por meio da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Instituído em 1996, o sistema CEP/Conep foi uma conquista para a pesquisa envolvendo seres humanos e tem trazido avanços para a ciência brasileira. Seus fundamentos são o controle social, a descentralização e o foco na segurança, proteção e garantia dos direitos e bem-estar dos participantes de pesquisas, sejam estas relacionadas à saúde, à educação ou a outra área. 

Faz algumas décadas busca-se estabelecer um marco legal para pesquisas experimentais, também conhecidas como estudos clínicos. Esse tipo de pesquisa clínica tem por finalidade avaliar a segurança, eficácia e qualidade de medicamentos, vacinas, técnicas cirúrgicas, cosméticos e dispositivos médicos, que a partir de agora chamaremos de ‘produto investigacional’. Quando os estudos clínicos visam ao registro do produto investigacional – como a ivermectina – para uso humano no Brasil, deverão também requerer aprovação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Na sua versão atual em tramitação no Senado, o Projeto de Lei (PL) 6.007/2023, substitutivo da Câmara dos Deputados ao PL nº 7.082-C/2017, está composto por 65 artigos, organizados em nove capítulos. O PL proposto “dispõe sobre a pesquisa clínica com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica com Seres Humanos”, ou seja, extingue o sistema CEP/Conep. Isso se confirma pela inexistência da citação da Conep em todo o texto da lei, que faz referência apenas, nos artigos 5o e 9o, a um “órgão competente” que terá o papel de controle das atividades dos CEPs, podendo ainda existir CEP independente (artigo 63), sendo que nenhum artigo contextualiza sua constituição.

No parágrafo único do artigo 5o, as atribuições dadas ao citado órgão são atribuições da Conep. Vale ressaltar que a Conep, vinculada ao CNS, não é um órgão controlador, apenas de capacitação, certificação e acompanhamento de CEP. Essas características do sistema CEP/Conep por si só consolidam o sistema ético brasileiro para pesquisas científicas envolvendo seres humanos, o qual tem autonomia e é reconhecido internacionalmente. 

O PL transfere para o governo a responsabilidade pelas indenizações por danos decorrentes da pesquisa e isenta, em algumas situações não definidas, a responsabilidade do investigador e/ou do patrocinador. Acontece que as atribuições destes são definidas por diretrizes internacionais e pela Anvisa, não cabendo isentá-los de suas responsabilidades. O PL também coloca condições para o fornecimento gratuito de medicamento após o término do estudo clínico, fato que fragiliza esse importante direito do participante de pesquisa. 

Nesse cenário, o controle social é fundamental para dar voz aos cidadãos por meio de seus representantes, de modo que eles possam contribuir nas decisões legislativas e governamentais que os afetam. É urgente a inclusão, nesse debate, de representantes de voluntários de pesquisas, especialmente de populações vulneráveis ou indígenas, em número ilimitado, para zelarem pela aplicação de direitos já estabelecidos em normas nacionais e internacionais.

É urgente a inclusão, nesse debate, de representantes de voluntários de pesquisas, especialmente de populações vulneráveis ou indígenas, em número ilimitado, para zelarem pela aplicação de direitos já estabelecidos em normas nacionais e internacionais

Consideramos importante aprimorar a legislação relacionada a pesquisas para desenvolvimento de produtos para a saúde, para garantir tratamentos, vacinas e métodos diagnósticos seguros e eficazes para a população. No entanto, essa legislação deve dar garantia plena de direitos aos voluntários que se expõem aos riscos inerentes dos estudos clínicos, isto é, dos experimentos com produtos investigacionais, bem como deve respeitar todos os princípios e pressupostos normativos do marco regulatório brasileiro.

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